RAÍZES ANCESTRAIS: um causo de Caipora – Parte I

Fernanda Rettore/Secom CONAFER

O cururu distante da viola caipira se unia ao som do berrante e criava um fundo musical, para eles, afetivo; o odor dos silos recém abertos, preenchia o ambiente, marcando o final da tarde; largado na cadeira de balanço, feita em aço e fios coloridos, João fumava um cigarro de palha e encarava o horizonte distraído; à sua frente, Pedro, deitado no chão da varanda com um chapéu de palhoça sobre o rosto, quase dormia; e ao seu lado direito, Maria balançava na rede, suspirando com tédio de momentos em momentos. A irmã caçula, gostava daquela vida simplória, sem grandes desdobramentos, mas, apesar disso, ela nasceu com uma estranha inquietação em seu interior. Uma vontade de transgredir com a previsibilidade por vezes a dominava; saía pelo mato, sem rumo, em busca de aventuras. Nesses certos momentos, já havia encontrado uma onça, caído em um açude, sido perseguida por um Teiú e por uma vaca brava que protegia seu bezerro; já havia atacado e derrubado tocas de cupins, soltado o gado de madrugada e caido do cipó ao tentar se balançar. Os irmãos a alertavam, principalmente Pedro, cuja personalidade hesitante refletia preocupação com os perigos da mata. Mas Maria não se importava, não que fosse incapaz de sentir medo, mas possuía uma autoconfiança crua, que transcendia a crença de que era mais frágil do que o próprio medo. As vezes João a acompanhava, mas seu propósito era diferente, gostava de conhecer a mata, observar as árvores retorcidas, as pastagens, os lagos barrentos escondidos; sentia-se o senhor daquela paisagem, sabia onde estavam localizados os detalhes mais encantadores da fazenda e guiava, com precisão, os parentes que os visitavam pelas belezas da propriedade. Pedro, por sua vez, raramente se juntava aos irmãos; acreditava que a mata era traiçoeira, e não se referia apenas aos animais selvagens e famintos, mas aos espíritos que vagavam livres onde os olhos dos vivos não alcançavam.

Os últimos raios do sol coloriam o céu com tom lilases, enquanto a lua, ainda muito clara e fraca, se revelava aos poucos. 

— Estou com vontade de comer mel, — disse Maria despretensiosamente — acho que vou queimar aquela colméia que está no coqueiro logo no início da alameda da Quinta das Fazendinhas. 

— Vou com você! — exclamou João empolgado com a ideia de saborear favos inteiros — Vamos também Pedro!

— Não. — respondeu o irmão do meio, bocejando logo em seguida. 

— Vamos, Pedro! — gritaram Maria e João em couro. 

— Ainda não anoiteceu, não precisa ter medo do escuro… — disse Maria em tom de deboche. 

— Eu não tenho medo do escuro! — retrucou Pedro um pouco ofendido — Apenas não… não.. tudo bem! Eu vou. Não estou fazendo nada mesmo… — decidiu de repente, tentando disfarçar que o motivo de ter cedido era justamente o tom de voz da irmã, que como uma agulha fina, espetou seu ego frágil.

João e Maria gritaram vogais em comemoração, bateram palmas e saltaram depressa de seus assentos. Antes de partirem, Pedro adentrou a casa e ao alcançar a cozinha, com um gesto silencioso, apanhou um punhado de fumo seco e o embrulhou em um pedaço de papel pardo que estava jogado em cima da mesa; encheu seu pequeno cantil com água ardente, deixando que transbordasse algumas gotas, que caíram no chão esverdeado de cera; se armou com uma espingarda antiga e um pouco enferrujada e assobiou chamando os cães, seus companheiros fiéis. Brotou na varanda, onde os irmãos o aguardavam, com a postura de um soldado preparado para a guerra: os ombros rígidos para trás, o semblante sério e o queixo levantado. Maria e João, ao colocarem os olhos em Pedro, soltaram gargalhadas altas e intensas; com as cabeças pendidas para trás, sentiram os olhos lacrimejarem incontrolavelmente, ao mesmo tempo em que batiam os pés contra o chão com entusiasmo. Pedro fechou os punhos, franziu as sobrancelhas e mordeu os lábios com inquietude.

— Vocês são os piores! Bando de insuportáveis! — esbravejou passando por entre os dois irmãos e seguindo na frente junto com os cães, rumo à porteira que desembocava na estrada de chão. 

Seguiram para o local onde Maria havia visto a colméia; lá estava ela, grande, marrom, com os pequenos detalhes geométricos conferindo complexidade, beleza e harmonia à construção. Com passos cuidados, preservando o silêncio dos pássaros na quietude do crepúsculo, caminharam até bem próximo do coqueiro. Antes mesmo de acenderem o fogo, já sentiam o cheiro do mel, misturando-se com o aroma da poeira seca e das flores noturnas que começavam a se abrir. João apanhou um grande galho seco do chão e estendeu a mão vazia para Maria, que lhe entregou um pedaço de pano velho. Ele enrolou o pano no galho e quando riscou o isqueiro para atear fogo, Pedro o impediu: 

— Espera! Ainda estou colocando a cachaça para Caipora! — gritou enquanto enchia uma pequena casca de coco recém encontrada com o líquido. 

— Você e suas superstições… — disse Maria olhando para a oferenda que seu irmão preparava. — Caipora não existe!

— Existe sim! — exclamaram Pedro e João ao mesmo tempo. 

— Você fez bem em ter se lembrado de trazer, talvez a noite caia antes da gente voltar para casa. — continuou João, com uma seriedade incomum.

— Vocês são dois bobos! Já barbados e ainda acreditam nessas histórias infantis… espíritos da floresta são lendas que nossos pais contavam para fazer a gente obedecer! — disse Maria revirando os olhos.

Sem dar importância à opinião da irmã, Pedro continuou o preparo da oferenda, pediu licença e proteção à Caipora, enquanto João o aguardava. Ao finalizar, sinalizou com a cabeça para João acender a tocha e assim ele o fez; em chamas e com muita fumaça emergindo da queima, posicionou o galho embaixo da colmeia e a defumou até que caísse no chão, aos seus pés. Apagou o fogo com sucesso, jogando poeira e pisando com a botina grossa na tocha. Em seguida, pegou o canivete do bolso e com a ponta afiada, cortou o abelheiro ao meio. Maria, que sorria com bastante expectativa, contraiu os lábios quando viu o interior da colmeia: estava seca, não havia sequer uma gota de mel. Antes que pudessem reclamar, os três cachorros começaram a latir violentamente, rosnando e encarando o invisível. Os olhos de Pedro se arregalaram e, instintivamente, ele segurou a espingarda com as duas mãos. Maria, percebendo o medo palpável do irmão, iniciou uma série de piadas e risadas. Pedro continuou em silêncio, ocupado demais com os próprios pensamentos para responder às provocações da irmã, mas João, já impaciente diante da personalidade de Maria, interviu, com tom de voz firme, mudando de assunto:

— Semana passada vi outra colmeia na alameda dos Sertanejos, virando na primeira esquerda depois do bar do Tião. Vamos tentar ela? 

— Sim! — respondeu Maria, sem esconder a satisfação pelo irmão não ter desistido de conseguir o mel.

— Tudo bem… — concordou Pedro, mesmo com o coração acelerado pelo medo e pela ansiedade; colocou as mãos trêmulas dentro dos bolsos e seguiu os irmãos de cabeça baixa, sempre conferindo se os cães estavam por perto. 

O trio seguiu adiante, avistando a colmeia numa árvore catingueira, retorcida e solitária num grande espaço de pasto. Para chegarem até lá, João abriu caminho através de altos capins, com o auxílio de um facão afiado. O som da lâmina cortando a vegetação, narrava aquele instante da noite em que as primeiras estrelas surgiam no céu. À medida que avançam, a paisagem se transformava, dando lugar a uma campina baixa adornada apenas pela árvore tortuosa que apontava no horizonte. Lá, na vastidão aberta, avistaram a colmeia, rústica, imponente e impressionante, presa em um galho baixo da pequena árvore. Internamente, todos encheram-se de alívio pela antecipação diante da conclusão daquela tarefa, que de certa forma assumira um aspecto sombrio.

João, Pedro e Maria chegaram ao pé da árvore e rapidamente preparam o ataque, cada um ajustando um detalhe, como se já tivesse sido anteriormente combinado o que cada um faria. Derrubaram a colmeia e com o mesmo canivete, João, tenso sem saber porquê, cortou a superfície áspera e tenra. Os três olhavam com expectativa para o interior que lentamente se revelava amarelo, quando, de repente, os cães caíram repentinamente aos seus pés, emitindo uivos angustiantes. João, que estava agachado por cima do alveário, jogou o próprio corpo para trás no estalo do susto e caiu sentado; Pedro, mesmo de pé, caiu da mesma forma que o irmão, fazendo Maria imediatamente rir. Mas até o riso dela durou pouco, os cães começaram a se debater contra o chão, como se estivessem sendo atormentados por forças invisíveis e malignas. Assustados com o tumulto, falaram alto ao mesmo tempo e sem conseguirem se entender, fugiram em disparada incentivando os cachorros a fazerem o mesmo. 

Alguns segundos depois, o que havia acabado de acontecer lhes atingiu a consciência. 

— Esperem! — gritou Maria ofegante — Nós não sabemos se tinha mel dentro daquela colmeia.

— Deixe disso! Vamos embora! — Pedro respondeu com vigor — Caipora não quer a gente aqui… — completou, sussurrando baixinho em direção a João, como se suas palavras tivessem o poder de invocar o mal agouro. 

— Os cachorros estão aqui? — perguntou João sem responder os irmãos, girando a cabeça com o olhar atento. 

— Estão vindo ali! — apontou Maria em direção ao início da trilha aberta entre os capins, onde os cães que se aproximavam com as línguas penduradas numa espécie de sorriso canino e com os rabos agitando-se alegremente. 

— Então não era Caipora. — concluiu João pela tranquilidade dos animais, olhando para Pedro. 

Pedro olhou para o céu, respirou fundo e respondeu impaciente:— E o que acabou de acontecer com os cachorros? Se aquilo não foi um aviso, não sei o que foi! — exclamou com indignação. 

— Pode ter sido algum bicho que os assustaram… Vamos voltar lá e ver se tem mel, João! — pediu Maria com ar de súplica — Deixa o Pedro voltar pra fazenda se ele não quiser ir. 

A espinha de Pedro gelou com as últimas palavras da irmã, ele apertou os maxilares só com a ideia de fazer o caminho de volta para casa sozinho, mas rapidamente recompôs a expressão, tão rápido que nem João, que olhava para seu rosto, percebeu qualquer sinal de pânico. 

— Vamos com a gente, Pedro. Nós pegamos e saímos correndo. — incentivou João, balançando a cabeça verticalmente apenas uma vez, para firmar o combinado. 

Sem dizer nada, Pedro retirou o chapéu, coçou os cabelos e seguiu os irmãos de cabeça baixa. 

O grupo seguiu o rastro deixado por eles mesmos; Maria, que os guiava com segurança, fazia piada da situação que havia acabado de acontecer, mas João e Pedro continuavam tensos, andando pausadamente, procurando com os olhos entre a densa vegetação, por qualquer movimento estranho. Chegaram a colmeia e Maria correu e a abriu sem cerimônia, no entanto, ali também não havia nenhuma gota de mel. Então, um som agudo e prolongado cortou o ar e tiniu em seus ouvidos, levando-os a imediatamente cair no chão de joelhos. A sensação dolorosa do agudo intenso se transformou aos poucos em terror. Os olhares se encontram em um silencioso entendimento mútuo: algo sinistro estava à espreita, eles não estavam sozinhos. Pedro procurou ao redor, com os olhos arregalados, pelos seus cães, mas estes já haviam desaparecido momentos atrás. Com a voz trêmula e com bastante esforço, exteriorizou seu pior pensamento:

— …Caipora está aqui. — engoliu seco — Se for uma noite encantada, ela aparece mesmo se tiver feito oferenda. 

João, que compartilhava da mesma expressão de insegurança, balançou a cabeça em afirmação:

— Hoje é quarta-feira, os espíritos da floresta se reúnem às quartas para discutir assuntos próprios… — completou de forma tão vaga que parecia que falava consigo próprio.

— Não deveríamos ter voltado! — reclamou Pedro com arrependimento convicto.

Maria, sentindo-se responsável por ter os colocado naquela situação, pensou em aliviar o clima com uma piadinha sarcástica, qualquer coisa era melhor do que aquela crise de pânico compartilhada. Um assobio zombeteiro cortou o clima, os irmãos olharam para Maria, que começava a rir da própria brincadeira. No entanto, o riso não se concluiu, um súbito movimento no capim ao redor os prendeu no presente; como um vulto ágil correndo entre as folhagens, o capim agitava-se violentamente. Pedro e João viraram a cabeça assustados, ainda sentados no chão, seguindo o movimento do mato com os olhos; mas Maria, também sentada, olhava fixamente para frente, com a expressão de medo impressa e petrificada em seu rosto; queria virar para o lado e analisar se os irmãos estavam vendo o que ela via, mas não conseguiu desviar seu olhar. Em sua frente, uma presença misteriosa se manifestava, era completamente escura, apenas os olhos brancos delimitavam profundidade em seu corpo, ao mesmo tempo que pareciam enxergar a profundidade da alma de Maria, encarando-a de forma estranha e ameaçadora. 

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