“deixando assentados sem assistência, agora INCRA quer que terras sejam arrendadas”
José Carlos Bossolan
Sem assistência técnica da Superintendência Regional do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em São Paulo desde 05 de novembro de 2018, assentados agora poderão servir de “mão de obra” para o agronegócio, além de ceder parte dos lotes para produção de empresas vinculadas ao agro.
Enquanto a legislação permite que a maioria dos assentamentos do Estado de São Paulo já poderiam estar com os Títulos Definitivos dos lotes, com às famílias assentadas já pagando pelo imóvel, o INCRA quer que os lotes desapropriados como de interesse social para fins de reforma agrária, possam ser explorados por grandes corporações do agronegócio.
Há assentados que pretendem arrendar o lote, principalmente aqueles que não dispõe de renda fixa mensal ou que já trabalham registrados fora da propriedade rural, com possibilidade de ganhos iguais a outros fornecedores de grande porte. Os contrários argumentam que poderá gerar danos para propriedades limítrofes dos lotes arrendados, como uso de agrotóxicos que são espalhados pelo vendo, matando plantações e até mesmo contaminação de animais e supressão de árvores nativas, no caso de lavouras canavieiras.
“Se é parceria, então por que temos que nos capacitar para servir de mão de obra? Por que não plantam o arrendamento com cana, soja, eucalipto e o restante para o assentado? Isso seria parceria ao meu ver, ao contrário, é exploração da miséria que quem não tem recebido apoio do Governo Federal e está em situação difícil. É aproveitar a desgraça alheia para gerar mais riqueza para aqueles que já possui muito. Se é parceria, todos deveriam ganhar igual e não um ganhar e o outro receber valor irrisório que não lhe trará nenhum desenvolvimento ou possibilidade de angariar patrimônio para investir no lote” – comentou uma assentada a nossa reportagem na condição de anonimato.
A diretoria executiva do SINTRAF (Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Andradina e região), em reunião extraordinária na manhã desta terça-feira (31/05), se posicionou contrário a iniciativa – “… o SINTRAF de Andradina não compactua com esses pensamentos e não apoia tal iniciativa. Entendemos que o Programa Nacional de Reforma Agrária é sem sombra de dúvidas o maior e melhor projeto de inclusão social no país, que tem por objetivo a garantia de renda, moradia e soberania alimentar” – declara parte da nota.

Em audiência na Frente Parlamentar de Defesa dos Pequenos Agricultores do Estado de São Paulo na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), na segunda-feira (30/05), o superintendente do INCRA de São Paulo, Edson Fernandes, afirmou que a pseudo contrapartida social do agronegócio é a contratação de assistência técnica agronômica e veterinária “full time” (tempo integral), além de dois cursos de capacitação voltadas para suprir a necessidade do agronegócio, além das empresas arrendatárias, deverão prioritariamente contratar a mão de obra dos próprios assentados.

A medida vem sendo tratada pelo INCRA em São Paulo, como “parceria”, muito embora os mecanismos legais não foram divulgados e tão pouco aprimorados para que “os arrendamentos” de lotes da reforma agrária num total de 60% do imóvel possam ser explorados por terceiros. A legislação em vigor não permite e ainda pode penalizar os assentados. O que o superintendente da autarquia federal pretende, é permitir a apropriação das terras públicas para produção industrial e que os assentados sejam arrendatários e fornecedores de mão de obra, sem nenhum projeto de desenvolvimento da propriedade destinada à reforma agrária. A capacitação destinada aos assentados, não é voltada para o aprimoramento tecnológico na exploração do lote, onde às famílias prosperem e tenham acesso a novas técnicas de produção, ao contrário, serão operadores de máquinas, tratoristas, motoristas das empresas interessadas.
A reportagem do O Foco entrou em contato com a assessoria de imprensa do INCRA para obter informações sobre o projeto, mas até o fechamento desta matéria não obtivemos respostas e caso venha a ter posicionamento será publicado. A Instrução Normativa 99/2019 do INCRA, estabelece no artigo 31 que o assentado não pode ceder, a qualquer título, a posse ou a propriedade da parcela recebida, ainda que provisória e parcialmente, para uso ou exploração por terceiros. O mesmo é descrito nos contratos celebrados com os assentados e também é previsto na Lei 13.288/16.
O artigo 27 da mesma normativa, define que explora o imóvel direta e pessoalmente, inclusive o artigo 58, define como irregularidades cometidas por beneficiários da Reforma Agrária na exploração da parcela rural, que “deixar de explorar o imóvel e pessoalmente, por meio de sua unidade familiar, exceto se verificada situação que enseje justa causa ou motivo de força maior reconhecido pelo Incra, admitidas a intermediação de cooperativas, a participação de terceiros, onerosa ou gratuita, e a celebração de contrato de integração de que trata a Lei nº 13.288, de 16 de maio de 2016, ceder, a qualquer título, a posse ou a propriedade da parcela recebida, ainda que provisória e parcialmente, para uso ou exploração por terceiros, deixar de observar a legislação ambiental, em especial quanto à manutenção e à preservação das áreas de reserva legal e de preservação permanente, deixar de observar as diretrizes técnicas, econômicas e sociais definidas pelo Incra para o Projeto de Assentamento e por exemplo não cumprir demais obrigações e compromissos previstos no instrumento contratual.
A legislação por exemplo, permite inclusive que benfeitorias dos lotes de reforma agrária realizadas de boa-fé, fora dos investimentos da autarquia, gerem indenizações aos assentados que queiram repassar seus direitos do lote ou até mesmo a ocupantes irregulares. Na prática esse mecanismo não é aplicado.
Muitos lotes que não estão mais como os beneficiários originários, que simplesmente comercializaram a posse por meio informal, já que a “inércia” do INCRA não tem permitido avaliações de benfeitorias e muito pouco a regularização de ocupantes irregulares que estão explorando os lotes. A lei diz que para regularizar, o ocupante deve estar na posse do lote a um ano antes de dezembro de 2015.
Há por exemplo o projeto de lei 3768/21 em trâmite na Câmara dos Deputados, de autoria do deputado mineiro Zé Vitor, que se aprovado e sancionado, permitirá que a regularização ocorra para quem estiver no lote antes de dezembro de 2019. Hoje a regularização tem como parâmetro, dezembro de 2015. Famílias que não souberam aplicar corretamente os recursos públicos destinados a implantação dos assentamentos, estão empregados fora dos lotes ou até mesmo sobrevivendo de cestas-básicas ou auxílios financeiros do poder público. E sob essa ótica, é que o INCRA deseja repassar parcelas dos lotes para exploração do agronegócio.
A iniciativa até aqui obscura, soa como proposta eleitoreira para captar votos de famílias assentadas à reeleição de Jair Bolsonaro, e outros candidatos alinhados ao projeto político. Para comandar às ações da autarquia federal, foi nomeado desde o início do governo Bolsonaro para a Secretaria de Assuntos Fundiários, o pecuarista e ex-presidente da UDR (União Democrática Ruralista), Luiz Antônio Nabhan Garcia, cuja entidade de fazendeiros sempre se opôs a reforma agrária. A pasta é diretamente a controladora das ações do INCRA no país.
Se por ventura a parceria entre empresas e assentados, forem de fato além de mera assistência técnica, sem investimentos em projetos de alavancamento social, o único que prosperará com tal iniciativa é o agronegócio e indiretamente o INCRA que se exime de vez da responsabilidade de permanecer com ator direto no processo de reforma agrária.
ENTRAVES
A Instrução Normativa 98/2019 que rege sobre a seleção de candidatos da reforma agrária, define que “unidade familiar” – indivíduo ou família composta pelo titular ou titulares e demais integrantes que se proponham a explorar conjuntamente uma parcela da reforma agrária, com a finalidade de atender à própria subsistência e à demanda da sociedade por alimentos ou por outros bens e serviços.
A lei 8629/93, estipula que identificada ocupação ou exploração em projeto de assentamento por unidade familiar não beneficiária do Programa de Reforma Agrária, deverá o Incra notificá-la para que imediatamente desocupe a área e cesse a exploração, sem prejuízo de eventual responsabilização nas esferas cível e penal.
A mesma lei define que assentamentos criados até 22 de dezembro de 2014, poderão receber o Título Definitivo com força de escritura pública que transfere de forma onerosa ou gratuita e em caráter definitivo, a propriedade do imóvel da reforma agrária ao beneficiário. Não é permitido negociar o lote após a emissão do título pelo período de dez anos.
Com entrave legal, seria necessário para formalização da tal “parceria” vislumbrada pelo órgão de reforma agrária, eximir o assentado de qualquer penalidade, entretanto há a necessidade de mudança dos dispositivos legais. A reportagem do O Foco entrou em contato com uma das empresas interessas neste processo de exploração dos lotes e com o Ministério Público Federal para obter informações sobre como se dará essa parceria e legalidade da iniciativa e assim que houver manifestação será publicada.