Venda de plasma humano avança no Senado e põe em xeque doação de sangue

Vanderley Preite Sobrinho/UOL

Uma proposta para mudar a Constituição e autorizar a comercialização de plasma humano pela indústria farmacêutica avança no Senado, colocando em xeque a doação de sangue no Brasil. Líquido amarelado feito de água, sais minerais e proteínas, o plasma representa 55% do volume sanguíneo.

Depois de coletado, o sangue passa por uma centrífuga que separa o plasma para a fabricação de remédios para tratar pessoas com hemofilia, doenças autoimunes, cirrose, câncer, queimaduras, entre outras doenças. A Constituição de 1988 proibiu a venda de órgãos e tecidos humanos — incluindo o sangue e seus componentes — porque na década de 60, 70 e 80 pessoas empobrecidas vendiam sangue para sobreviver, com baixo controle de contaminação por HIV e hepatites.

Desde a decisão, cabe apenas ao Estado o processamento e distribuição de sangue no Brasil. Hoje, a estatal Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) é a única autorizada a utilizar plasma para produzir medicamentos no país. É essa exclusividade que uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) de 2022 quer acabar. De olho em um mercado de R$ 10 bilhões por ano na América Latina, a proposta avançou rapidamente no Senado e ser votada ainda hoje na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça).

A relatora Daniella Ribeiro (PSD-PB), da CCJ, já expediu um parecer favorável que recebeu a antecipação de um voto aprovando a mudança. Se passar, a proposta vai para votação em plenário. “A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos (…) bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização, com exceção ao plasma” – diz o texto da PEC.

Com a mudança, farmacêuticas privadas poderiam coletar o plasma e fabricar remédios para exportação e venda ao mercado interno, inclusive ao SUS. No Brasil, há 1.400 doadores para cada 100 mil habitantes. Na Dinamarca —onde a doação é um exemplo—, essa proporção é de 14 mil doadores para cada 100 mil pessoas.

“Permitida a comercialização de plasma, haverá diminuição significativa das doações do sangue total”, defende o senador Humberto Costa (PT-PE), um dos principais opositores da PEC. “Se uma pessoa doa por solidariedade, ela começará a se perguntar se vale a pena doar sangue enquanto outros estão vendendo” – disse o senador, Humberto Costa.

Costa se refere a um trecho da PEC que abre a possibilidade para que as farmacêuticas voltem a pagar pela doação, como no passado. Essa remuneração estava na proposta original, mas a pressão de opositores substituiu o trecho pela determinação de se aprovar uma lei para regulamentar “os requisitos para coleta, processamento e comercialização de plasma”.

“Isso realmente não pode acontecer”, concorda o presidente da Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos), Nelson Mussolini. “Antigamente passava um ônibus na Praça da Sé, a pessoa entrava de um lado, doava e saía do outro com dinheiro para tomar um café.”

Ele defende que seja substituído o termo “remuneração” por “benefício”. “Pode ser um desconto no plano de saúde, por exemplo. Já não é beneficiado quem doa sangue e tem folga do trabalho?”, questiona. “A regulamentação também deve obrigar que parte do sangue remunerado vá para o SUS gratuitamente” – argumenta Nilson Mussolini, da Sindusfarma.

Mesmo sem a remuneração, porém, a doação de sangue será afetada, diz a Hemobrás. É que a PEC sugere que os laboratórios usem outro método para coletar o plasma, a chamada aférese. Ao contrário do método tradicional —que retira todo o sangue e separa seus componentes em uma centrífuga—, na aférese o sangue é bombeado para uma máquina que separa o plasma e devolve ao corpo as hemácias e plaquetas.

“Isso permite doar 12 vezes por ano, contra quatro no método tradicional”, diz Frederico Batista, farmacêutico da estatal. Com isso, quem passar a doar plasma pode desistir de doar o sangue integral, “colocando em risco a oferta de sangue no país”, afirma. “A PEC incentiva a doação de sangue”, discorda o presidente da Sindusfarma. “Mas a regulamentação precisa dizer que uma parte do sangue remunerado deverá ir para o banco de sangue dos hospitais”.

Remédios feitos com plasma

A indústria defende que a “concorrência” vai baratear os remédios feitos com plasma. “Temos empresas internacionais que vão instalar fábricas no Brasil”, diz Mussolini. “A Hemobrás terá de melhorar seus processos para produzir mais barato”. O senador discorda. “A Hemobrás é uma empresa estatal, sem qualquer interesse em auferir lucros”, diz. O problema é que a Hemobrás não é autossuficiente e ainda importa remédios feitos com plasma, às vezes com dispensa de registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

“Essa importação está criando uma separação de classes”, diz a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), relatora da PEC. “Ricos recebem medicamento com registro, pois os planos de saúde só cobrem se estiverem registrados na Anvisa, e o pobre no SUS fica com o resto”. Autossuficiência da Hemobrás está próxima.

Fundada em 2004, a empresa ainda precisa exportar parte do plasma brasileiro para laboratórios no exterior e importar os remédios prontos. Uma fábrica em Pernambuco, no entanto, está em fase final de construção, e promete produzir todo o plasma necessário ao Brasil a partir de 2025.

Se a PEC for aprovada, a “concorrência” pode inviabilizar a Hemobrás, dizem os críticos. A estatal afirma em nota que os preços do plasma seriam regulados pelo mercado internacional, elevando os preços praticados no Brasil. Autor da PEC, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) escreveu no texto que o TCU (tribunal de contas da União) encontrou desperdício de quase 600 mil litros de plasma em 2020.

A estatal diz que “nunca desperdiçou plasma” e o tribunal disse ao UOL que ainda não decidiu sobre o assunto. Procurado, o senador não se manifestou. Em nota conjunta, o Ministério Publico Federal e o MP junto ao TCU criticaram a PEC. Afirmam que, uma vez autorizada a comercialização, o plasma estaria sujeito ao livre mercado e às suas “regras e consequências”, “como manipulação de preços, estocagem indevida, concorrência desleal”.

O CNS (Conselho Nacional de Saúde) também critica o texto. Afirma em nota que a PEC “fere a recomendação da OMS [Organização Mundial de Saúde] para que o sangue seja doado de forma voluntária e não remunerada”. A mudança faria do plasma uma “mercadoria”, disse a ministra Nísia Trindade (Saúde) em uma live com o presidente Lula (PT) na semana passada. “O sangue não pode ser comercializado, não pode ter remuneração a doadores, isso foi uma conquista da Constituição”, afirmou.

“Estamos trabalhando para que o sangue não vire uma mercadoria” – disse a ministra da Saúde.