Lula recria Conselho que ajudou a tirar o Brasil do Mapa da Fome em 2014

Denise De Sordi/UOL

O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) é um marco na história da Nova República brasileira por sua capacidade de garantir a existência de uma política de Segurança Alimentar e Nutricional aos brasileiros. Apesar disto, foi desativado a nível nacional em 2019, sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

A reativação deste órgão, que agora volta à cena por meio da Medida Provisória 1.154, de 1 de janeiro de 2023 sob o governo Lula (PT), é uma conquista da sociedade brasileira nas eleições de 2022, e a sinalização de que o novo governo está, como anunciado em sua campanha, comprometido com o combate à fome e à pobreza.

Instalado em maio de 1993, ainda no governo de Itamar Franco (1992-1994), o Conselho teve por função equilibrar o processo de transição democrática – em um cenário nacional politicamente efervescente após o impeachment de Fernando Collor -, unindo sociedade civil, movimentos sociais e governo em torno de discussões que se conectaram no combate à fome.

A proposta de criação do Consea – em resumo – emergiu da convergência de diversas mobilizações e reivindicações sociais que corriam no início dos anos de 1990, a exemplo da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida que tinha como patrono Herbert de Souza (o Betinho), a Igreja Católica, movimentos do campo e o próprio PT, que ao propor a criação de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional à Itamar Franco, acabou desencadeando a criação do Conselho.

Com composição majoritária de representantes da sociedade civil somados aos ministros, o Consea dos anos de 1990 teve por função avaliar, orientar e propor políticas públicas orientadas em torno de eixos garantidores de condições mínimas de sobrevivência aos trabalhadores. Ao promover espaços de discussão nacionais, permitiu a criação de um espaço público para que diferentes propostas e reivindicações pudessem ser consideradas.

Neste período, com a divulgação do primeiro Mapa da Fome, o Consea teve por mérito colocar a problemática da fome como uma questão política nacional. Entretanto, esta primeira experiência do Consea e as propostas que ali surgiram tiveram vida curta. O Consea foi encerrado no governo de Fernando Henrique Cardoso (Partido da Social Democracia Brasileira, PSDB), que reformulou a agenda política nacional retirando da pauta pública a problemática da fome.

Entre os anos de 1995 e 2002, o Consea foi substituído pelo Programa Comunidade Solidária (PCS), que possuía características e princípios diferentes dos do Conselho. Apesar de manter em sua composição representantes da sociedade civil, sua capacidade de intervenção no governo e possibilidade de proposição de políticas públicas foi diminuída para que o foco estivesse em ações locais e no incentivo à atuação do terceiro setor, passando ao largo da responsabilização do governo pelo aumento da pobreza e da fome no país.

As idas e vindas do Consea desde a década de 1990 estiveram, portanto, orientadas pelas mudanças das políticas econômicas dos governos e por suas prioridades em alinhar o crescimento econômico ao desenvolvimento social. O Conselho foi reativado em 2003, sob o governo Lula, que assumiu naquele período o conhecido compromisso de que ao final de seu governo todos os cidadãos fariam pelo menos três refeições ao dia.

Já nos anos 2000, teve papel fundamental na articulação e monitoramento de políticas públicas que promoveram a saída do país do Mapa da Fome em 2014. As atividades do Conselho envolviam uma gama de atividades fundamentais para a garantia de Segurança Alimentar e Nutricional aos brasileiros, tais como:

O controle de estoques de alimentos;

Programa de cisternas

Agricultura familiar com a articulação entre campo e cidade

Rotulagem de alimentos

Monitoramento de ações e políticas públicas

Com o formato instituído para o Consea em 2003, a mobilização social foi incorporada à gestão dos governos que seguiram, permitindo a formulação de orientações e diretrizes que promoviam uma abordagem ampliada às nossas questões sociais. A desativação em 2019 foi simbólica porque em seu lugar nada foi feito, e porque o encerramento do Conselho como primeiro ato de governo indicou o fechamento do diálogo com a sociedade civil, com as famílias de pequenos agricultores e o aumento da violência no campo e ambiental em favor da produção de alimentos para exportação.

Assistimos à finalização de programas fundamentais para a Segurança Alimentar e Nutricional, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a paralisação do programa de merenda escolar, o esvaziamento e privatização de estoques púbicos de alimentos, o desmanche da rede de proteção social e o retorno do país ao Mapa da Fome, com um saldo de 33,1 milhões de brasileiros passando fome, segundo dados da Rede de Pesquisa em Segurança e Soberania Alimentar (Penssan).

A notícia do retorno do Consea em 2023, como um dos primeiros atos do governo, é uma conquista e também uma janela de oportunidades. Entre os anos de 2019 e 2022, os movimentos sociais, dentre outros e a exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento Sem Terra (MST) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), foram responsáveis pela mobilização social de campanhas nacionais que abriram cozinhas solidárias pelo país, pela distribuição de cestas básicas em larga escala e, principalmente, pela proposição de uma Política de Segurança Alimentar que permite conectar a ideia entre trabalho, alimentação e condições dignas de existência.

Mais que a distribuição de alimentos, entre 2019 e 2022, foi posta à mesa uma proposta de combate à fome e à pobreza que surgiu da experiência social de emergência que foi necessária nestes anos. Se nos anos de 1990 o enfoque esteve na distribuição de alimentos e nos anos 2000 avançamos ao integrar a participação social ao governo, agora temos a possibilidade de integrar um projeto social fincado nas concepções de Soberania Alimentar e de Segurança Alimentar e Nutricional.

Retomar as atividades do Consea em 2023, considerando as iniciativas dos movimentos sociais urbanos e rurais, pode ter uma importância estratégica na revisão de um modelo de desenvolvimento centrado no debate popular que reivindica o estabelecimento de níveis de igualdade social mínimos enquanto norte para as políticas públicas sociais. Por isto, a reabertura do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar (MDA) é também peça chave na sinalização de políticas que lidem com o combate à fome e à pobreza de ponta a ponta.

Em 2023, o acúmulo de experiências no combate à pobreza e à fome é maior do que era nos anos da década de 1990 e no início dos anos 2000, há mais instrumentos e formas de gestão disponíveis. O retorno do Conselho configura-se como uma conquista, mas também como uma chance de ampliação da democracia no país, que pode se traduzir em ações integradas com políticas públicas que se expressem em melhorias nas diversas dimensões do social, pensando o acesso à alimentação, à saúde, ao emprego, à renda e à educação como dimensões integradas da vida em sociedade, promovendo a concretização de políticas públicas sociais de Estado para o combate à pobreza – que é geradora da condição de fome – tanto no campo, quanto na cidade.

Denise De Sordi é historiadora é doutora em História Social, autora da tese “Reformas nos programas sociais brasileiros: solidariedade, pobreza e controle social (1990-2014), especialista nas relações entre Estado e Sociedade com foco nas políticas e programas sociais de combate à pobreza no Brasil contemporâneo. Atualmente está como pesquisadora dos Programas de Pós-Doutorado da COC/ FIOCRUZ e da FFLCH/USP desenvolvendo pesquisas sobre o Auxílio Brasil, o empobrecimento e a soberania alimentar a partir do trabalho das cozinhas solidárias e comunitárias