Empréstimo consignado no auxílio poderá piorar situação de vulneráveis, diz Idec

“Juros poderão chegar a 98% ao ano e piorar o poder de compra de beneficiários no próximo ano”

José Carlos Bossolan

Foi publicado no Diário Oficial da União nesta sexta-feira (12/08), o Decreto 11.170/22, que autorização de desconto para fins de amortização de empréstimos e financiamentos no âmbito do Programa Auxílio Brasil. O decreto soa como um aceno do presidente da República para agradar banqueiros, após almoço na Febraban (Federação Brasileira dos Bancos) na última segunda-feira (08).

Na avaliação da economista Ione Amorim, coordenadora do programa de serviços financeiros do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), a forma como está apresentada, a medida representa um claro favorecimento às instituições financeiras – que terão bilhões de reais para serem captados na forma de oferta de crédito de baixo risco – em detrimento das famílias em situação de pobreza que precisam desses recursos para sua sobrevivência diária.

“Estamos falando de pessoas que vivem em extrema pobreza, com um déficit educacional importante e que não têm familiaridade com o sistema financeiro”, afirmou. Para a economista, o Ministério da Cidadania, que é responsável por operar o consignado, já demonstrou falhas no gerenciamento de outros benefícios concedidos pelo governo, como o auxílio emergencial. “O beneficiário verá a porta de entrada do endividamento, mas não sua porta de saída” – aponta o Idec.

Uma auditoria feita pela CGU (Controladoria Geral da União) apontou que o auxílio emergencial foi pago de forma irregular para mais de 5 milhões de pessoas, incluindo 135 mil que já estavam mortas. O prejuízo total chegou a R$ 9,4 bilhões. “Há falta de controle e de gestão nos cadastros. Um simples cruzamento de dados impediria boa parte desses pagamentos indevidos. Com o consignado é difícil esperar que seja diferente. Certamente será um ambiente de muitas fraudes como foi o auxílio emergencial” – afirma a coordenadora do programa de serviços financeiros do Idec.

Fundo deve ser de bancos públicos, não dos privados

O Instituto avalia que para minimizar esses riscos é necessária a criação de um fundo governamental garantidor dos contratos realizados sob o Auxílio Brasil. Dado o caráter provisório do programa, o fundo teria o intuito de proteger os consumidores vulneráveis da restrição ao acesso a bens básicos de consumo e ao superendividamento. Nesta proposta, a responsabilidade sobre todo o programa de crédito consignado do Auxílio Brasil recairia sobre um banco público, de preferência a Caixa Econômica Federal, que seria responsável por analisar e liberar tais créditos. 

Além disso, o Idec entende que o fundo garantidor também deve ter o objetivo de cumprir eventuais dívidas deixadas por beneficiários que tenham sido retirados do programa social ou que não tenham condições de arcar com a continuidade das parcelas. Outro ponto é com relação aos juros aplicados sobre estes contratos. Há previsão de taxas superiores às praticadas pelo mercado, podendo chegar de 79% a 98% ao ano.

Assédio por empréstimos

Além das condições de oferta desfavoráveis, a prática abusiva do assédio, com discurso de direito de acesso ao crédito barato, tem sido explorada nas redes sociais, por telefone e dentro de agências bancárias. Há também o problema do vazamento de informações sigilosas, expondo as pessoas em situação de vulnerabilidade aos golpes praticados no mercado. 

Outro ponto de atenção diz respeito à possibilidade da perda do benefício, mas com a continuidade da obrigação de pagar parcelas mensais para as instituições bancárias. Além disso, há a possibilidade de redução do valor médio do Auxílio Brasil, uma vez que o recente aumento de R$200,00 é válido somente até dezembro de 2022. Nessa hipótese, existiria a possibilidade de os consumidores terem de arcar com parcelas proporcionalmente ainda mais onerosas a partir de janeiro de 2022.

“Devemos considerar essa condição extremamente abusiva, pois além da elevada taxa de juros, ela penaliza ainda mais os consumidores em extrema vulnerabilidade socioeconômica. Para evitar que o programa se transforme em uma medida de transferência de recursos sociais para os bancos, deve-se limitar os juros ao patamar de 13,25% ao ano, ou seja, o  equivalente à Selic, taxa básica de juros, e que sua concessão, considerando a natureza do crédito, não deve trazer lucros à instituição financeira governamental” – avalia o Idec. 

O Idec compreende que esta seria a única forma de tornar esse programa de crédito consignado para beneficiários de programas sociais menos prejudicial, com menor chances de endividamento. Além de também evitar que bancos privados lucrem com a necessidade de sobrevivência da população mais pobre brasileira.

O Instituto sabe que as instituições financeiras privadas já estão preparadas e iniciaram até pré-contratos para esse modelo de crédito consignado, o que dificulta a mudança desse cenário para os bancos públicos neste momento. A definição de um fundo garantidor bancado pelo governo para os bancos privados não faz sentido. 

Bancos estão protegidos

Ione diz ainda que a forma que o governo está desenhando o programa, com o Ministério da Cidadania repassando diretamente aos bancos os valores das parcelas contratadas no empréstimo, mostra que as instituições financeiras possuirão uma espécie de garantia do governo contra a inadimplência. “Estão dando concessão para que os bancos se apropriem de 40% do Auxílio Brasil”, afirmou. Além disso, a taxa de juros que será cobrada é livre, o que expõe ainda mais os consumidores. “Quem mais precisa recebe crédito caro, em ambiente frágil e exposto a fraudes. Do outro lado, para os bancos, há um sistema seguro, com licença governamental para explorar esse crédito.

Para Ione, diante de uma situação social tão grave, com um alto número de vulneráveis, o sistema financeiro deveria reconhecer que a medida favorece o sistema em detrimento da situação de pobreza dessas famílias. “São pessoas que tem necessidades de recursos para o bem-estar social. Ao lado de políticas de microcrédito deveria ter capacitação e conscientização”, afirmou.

Governo faz alertas

De acordo com o Ministério da Cidadania, os bancos deverão disponibilizar “informações, de capacitação e de alertas, com vistas a promover a educação financeira do beneficiário responsável familiar anteriormente à contratação do empréstimo”. Estas regras também serão regulamentadas pelo Ministério da Cidadania. O argumento de fontes do governo para defender a liberação de crédito é que é possível que essas pessoas mais vulneráveis possam tentar substituir dívidas mais caras por um empréstimo mais barato.

Na semana passada, em entrevista ao Flow Podcast, Bolsonaro disse esperar que a população “não entre em uma bola de neve de empréstimos. “O ideal é não pegar empréstimo, mas tem gente que precisa pegar pra saldar outras dívidas, pra pagar um juros menor (sic)”, disse.

Com informações de Carla Araújo/UOL.