Em três aldeias do Pará, 60% das indígenas estão contaminadas por mercúrio

Adriana Amâncio e Anelize Moreira/Universa

Um pedaço de papel com o diagnóstico de contaminação por mercúrio começa a explicar os sintomas que chegaram de repente. “Quando recebi o resultado do exame vi que estava muito alterado [o nível de mercúrio]: deu vermelho. Fiquei com medo e cheguei a chorar, porque aqui a gente sabe que não tem cura e não tem tratamento”, contou Aldira Akai Munduruku, da aldeia Sawré Muybu, na região do Tapajós (Pará).

O teste de Gilmara Akay, da mesma comunidade, teve a cor laranja, que significa nível médio de contaminação. O exame do marido apareceu vermelho, indicando níveis críticos, e as crianças têm contaminação leve. “Todo mundo não queria mais comer peixe. Isso deixou a gente mais abalado”, disse Gilmara, com voz embargada pelo medo de consumir um alimento tradicional do seu povo.

Marido de Gilmara, Deivison Saw Munduruku, também enfrenta dificuldades para caçar em função das dores, fraqueza muscular e episódios de desorientação no meio da mata. Os homens costumam sair para caçar às 8 horas da manhã e retornam no fim da tarde. “Eles arrodeiam essa floresta todinha procurando caça para dar o que comer para os filhos. Deivison fica muito triste porque não consegue caçar como antes”, contou Gilmara.

Contaminadas, Aldira e Gilmara estão fadadas a conviver com as consequências em todas as etapas da vida, e carregam desde o ventre as gerações que virão ao mundo com o mesmo mal. “Evito pensar nas doenças e na morte, mas me preocupo todos os dias com cada sintoma que surge”, desabafou Aldira.

Altos níveis de contaminação

O resultado dos testes da Fiocruz às comunidades testadas veio em agosto de 2022. Os níveis de mercúrio acima de limites seguros foram detectados em seis de cada dez participantes, ou seja, 60%. Nas comunidades às margens dos rios mais afetados pelas atividades garimpeiras, sobe para nove em cada dez participantes os que apresentaram altos níveis de contaminação.

O estudo ocorreu por demanda dos indígenas, entre outubro e novembro de 2019, com 200 habitantes de três aldeias impactadas pelo garimpo: Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy, nas regiões do médio e baixo Tapajós, no Pará. Os pesquisadores realizaram entrevistas, coleta de amostras de cabelo e de peixes, para aferição dos níveis de mercúrio e avaliação clínico-laboratorial.

Sete artigos científicos foram publicados analisando diversos aspectos da contaminação com mercúrio, desde o impacto na saúde neurológica e mental, passando pelos efeitos nas mulheres e crianças, até a contaminação pelo consumo de peixes. Um dos textos, com análises feitas em 16 mulheres e 18 crianças, indicou que 62% das mulheres em idade fértil ultrapassaram os limites de referência da Organização Mundial de Saúde (OMS).

As crianças tinham mais anemia, mais desnutrição e frequentes queixas de sintomas neurológicos. Não existe um critério brasileiro para analisar a contaminação por mercúrio, e isso é um desafio, segundo o neurologista Erik Jennings, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que atua há mais de três décadas com saúde indígena na região.

“Não tem um padrão brasileiro que considere essas nuances regionais [na Amazônia]”, diz o médico, explicando que o parâmetro da OMS funciona para a população mundial, mas pode servir para grupos específicos.

Mulheres, crianças e jovens ainda mais vulneráveis

A contaminação entre as mulheres traz complicações na gestação e no parto, aumenta o risco de aborto espontâneo, e passa da mulher para os bebês através da placenta. Crianças contaminadas podem sofrer perda de audição, déficit cognitivo, atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor e malformações congênitas.

Com isso, mulheres indígenas sofrem na gestação, no parto e depois ficam com uma demanda de cuidado mais alta. Ao envelhecerem, podem apresentar alto teor de contaminação por acúmulo de substância no organismo ao longo da vida. Beka Saw Munduruku, de 20 anos, vê as tias sofrerem com as consequências do garimpo, principalmente as que são mães.

“Elas sentem dores de cabeça e tiveram abortos”, relatou. Toda a família de Beka está contaminada e os abortos têm acontecido bastante nas mulheres da aldeia, segundo ela, que não pensa em ter filhos. A jovem indígena escreveu uma carta para o presidente Lula em dezembro de 2022, pedindo atenção para a fome dos povos indígenas.

O neurologista da Sesai Erik Jennings chama a atenção para o fato de a contaminação ser proporcionalmente maior em mulheres, crianças e jovens até 18 anos. “Preocupa bastante, principalmente porque é uma faixa etária de mulheres em idade fértil. Os mundurukus estavam vendo crianças nascerem com problemas neurológicos, dependentes de cadeira de rodas, sem nenhuma condição cognitiva, capaz de manter uma vida normal”, alertou.

A grande carga de mercúrio injetada na Amazônia está sendo adicionada ao meio ambiente, e isso circula, como destaca o médico e pesquisador da Fiocruz Paulo Basta. “Esses metais não caem só na água, mas estão no solo. Evaporam, vão para as nuvens, navegam, podem ser distribuído para outras regiões do Brasil e do planeta. É uma crise de saúde pública de precedentes internacionais”.

O elo entre a fome e o mercúrio

O garimpo ilegal contamina os rios e peixes com o mercúrio, abre clareiras na floresta, que arrastam árvores, espantam animais de caça e mudam os cursos hídricos. Assim, as principais fontes de sobrevivência dos indígenas somem aos poucos. E, para movimentar a cadeia de extração do ouro, os garimpeiros cooptam, com promessa de riqueza, a mão de obra indígena.

A insegurança alimentar instalada nas comunidades faz muitos indígenas deixarem de consumir produtos tradicionais da roça, caça e pesca, passando a ingerir industrializados, ultraprocessados, vindos dos trabalhadores do garimpo. “Começaram a aparecer problemas de obesidade, de hipertensão, de diabetes”, contou Paulo Basta, da Fiocruz.

Quadros de desnutrição e anemia tornam mulheres e crianças mais suscetíveis aos efeitos do mercúrio no sangue, ao surgimento de outras doenças e à infecção por males endêmicos da região, como a malária. Os sintomas da contaminação pelo mercúrio ainda podem ser confundidos com outras doenças, como a depressão e a visão alterada.

“O que acontece na Amazônia embaixo do nosso nariz é uma contaminação mais lenta, mas ao longo do tempo, mais crônica”, aponta o neurologista Erik Jennings. Para ele, a gravidade de tudo isso só será percebida quando tiver muita gente com alteração cognitiva, de concentração, de memória, com irritabilidade. “Sinais sutis colocados como causa de outras doenças, na verdade, estão relacionados a anatomia de mercúrio”, explica ele.

Comércio irregular e impactos conhecidos há anos

Os testes de contaminação com mercúrio começaram há décadas na Amazônia. Mas, desde 2014, algumas pesquisas passaram a atender solicitações de instituições indígenas preocupadas em entender melhor a contaminação. Em 2016, foi divulgado um estudo com 19 aldeias Yanomami e Ye’ Kwana, indicando que cerca de 92% das pessoas tinham altos índices de contaminação.

Na unidade de saúde da comunidade Vila Nova, em Porto Grande, no Amapá, “tudo se resolve com dipirona”, diz o coordenador de gestão do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Décio Yokota. E completa: “não havia interesse de que as mulheres soubessem da contaminação por razões óbvias”.

O pesquisador considera que é importante proibir a comercialização de mercúrio, cumprindo o Acordo de Minamata, do qual o Brasil é signatário. Décio revela que a principal via de chegada da substância às áreas de garimpo ilegal são empresas odontológicas de fachada. Elas adquirem o produto alegando uso clínico, mas o desviam para uso na extração de ouro (com o calor, o mercúrio evapora e resta o ouro).

Situação limite no território Yanomami

A nova gestão do Ministério da Saúde decretou emergência em saúde pública no território Yanomami em janeiro de 2023, com a revelação da crise. A Sumaúma Jornalismo revelou que 570 crianças da etnia morreram por causas evitáveis nos quatro anos do governo Bolsonaro. Mas não é de hoje que os indígenas pedem socorro devido à invasão garimpeira. Entre 2012 e 2021, o garimpo de ouro cresceu 500%.

Só em 2022, revela o relatório Yanomami sob Ataque, esse crime avançou 46% na terra indígena, área com maior número de requisições formais para mineração. No Brasil, há cerca de 20 mil garimpeiros na Terra Yanomami, que abriga cerca de 30 mil indígenas, de acordo com a Sesai.

“As mulheres estão muito preocupadas, pois as crianças já estão nascendo com malformação. Estão caindo os cabelos e de novo sentindo coceira”, afirmou Dário Kopenawa, presidente da Associação Hutukara Yanomami.

Qual o futuro da saúde indígena

Entre os desafios está rever o orçamento da Sesai do Ministério da Saúde, que atende mais de 762 mil indígenas aldeados no Brasil. “É preciso primeiro recompor o orçamento. Um levantamento que fizemos mostrou que [o que tem previsto] daria para garantir só os serviços básicos de saúde por apenas quatro meses”, explica a ministra Sônia Guajajara.

No Projeto de Lei Orçamentária (PLOA), encaminhado por Jair Bolsonaro ao Congresso, estavam previstos R$ 664 mil para “Promoção e Recuperação da Saúde Indígena”. Durante o processo de transição para o governo de Luís Inácio Lula da Silva, o valor triplicou para R$ 1,5 milhão. Os dados são do Siga Brasil.

A equipe de reportagem perguntou ao Ministério da Saúde sobre a quantidade dos atendimentos médicos realizados nas comunidades indígenas em 2022. Segundo o órgão, “foram realizados 5.608 atendimentos em 136 aldeias” – o que, numa conta superficial, daria uma média de três atendimentos por mês em cada comunidade.

Sobre a contaminação por mercúrio de mulheres e crianças, a ministra dos Povos Indígenas percebe a necessidade de laboratórios em regiões estratégicas para facilitar o acesso a exames, testagem das pessoas e da água. “São coisas muito básicas. Precisa ter uma equipe permanente, não só um médico que vem a cada três meses, ou mensal”, afirmou, acrescentando que isso não ocorre porque não sai do papel, mas a lei garante uma equipe multidisciplinar.

Sônia afirma que o combate às atividades ilícitas nos territórios indígenas é prioridade no ministério atualmente. “Trouxemos essa urgência para que a Funai volte a assumir a sua missão institucional, que é proteger os povos indígenas, ao invés de ficar promovendo perseguição, garimpo e agronegócio nos territórios.”

Edição e revisão: Ana Carolina Araújo, Joana Suarez, Vitória Régia da Silva, Maria Martha Bruno.