Fernanda Rettore/Secom CONAFER
No centro da floresta, brotou miúda e silenciosa, de um solo muito úmido entre duas pedras de tamanho médio, uma lagoa límpida. Por um toque de encanto, expandiu-se rapidamente, a ponto que cobria toda terra que alcançava. Se transformou em um grande rio, que dentre todos os seus desaguamentos, escorria para uma lagoa serena, na ponta leste do povoado de Parnaguá. Ali, residia uma viúva e suas três filhas.
Suas filhas eram pessoas comuns, ignorantes até, daquelas que não nunca se questionam sobre o porquê de se estar vivo. Por isso, quando a filha mais nova caiu subitamente em tristeza, todas ficaram aflitas e interrogativas. Um véu de tristeza envolveu a caçula e a lançou em pensamentos solitários, profundos e perturbadores. A família tentava compreender a natureza da enfermidade, mas o murmúrio constante da lagoa era o único que parecia compartilhar o pesar da jovem.
Na verdade, ela carregava consigo um segredo. Não havia muito, vivera um amor arrebatador, tão intenso e violento, que a fez delirar em utopias. Mas a vida, mestre impiedosa, a arrancou da ilusão e a atirou na realidade da carne e do sangue, do nascimento e da morte.
Numa manhã, que lhe parecia mais ensolarada que o natural, talvez porque ela se encontrava inebriada pelo sentimento romântico, foi a feira no centro do povoado. Escolhia jambus com rigorosidade, atentava a cor e a firmeza dos legumes, quando ouviu que os serralheiros do Seu Joaquim, fazendeiro conhecido da região, haviam sofrido um acidente de carro e falecido. “Não sobrou nenhum!”, ouviu antes de abandonar a sacola cheia e partir.
Não pôde compartilhar o luto com ninguém, o povo poderia especular sobre até que ponto ela havia se entregado ao falecido, e se isso acontecesse sua imagem ficaria manchada para sempre. Nos tempos antigos, esse tipo de banalidade importava. Mas em pouco tempo, descobriu que não iria precisar contar sobre o namoro, as pessoas iriam descobrir sozinhas: estava grávida. Ela ainda era muito moça, ingênua como um boto, e não enxergava a hipocrisia na exigência pela pureza das mulheres até o matrimônio, por isso carregava nas costas o peso do pecado.
Prosseguiu pela gestação, deprimida e melancólica, dividida entre surtos de saudade do falecido e surtos de ódio contra a criança que viria arruinar sua vida. Entretanto, os meses avançaram e sua barriga não apontou, havia engordado alguns quilos mas seu abdômen mantivera-se reto e duro como o de uma cadela prenha. Ouviu algumas piadinhas pelo ganho de peso, ensaiou umas risadas murchas e, como não foi diretamente confrontada, não teve coragem de assumir seu estado nem mesmo para sua família.
Chegado o momento do nascimento da criança, acordou de madrugada com dores intensas debaixo das costelas. Não conseguia respirar e tão pouco se mover, mas num instante súbito, percebeu que estava em trabalho de parto e logo seus pulmões encheram-se de ar e coragem. Levantou, calçou os chinelos gastos, apanhou uma toalha surrada que sua mãe não sentiria falta e um tacho de cobre igualmente abandonado, e partiu. Adentrou os bosques da floresta, em busca inconsciente pelo local em que havia concebido, para ocultar a vergonha da qual era culpada.
Chegou à margem da lagoa, molhou os pés na água e viu seu reflexo, estava descabelada, suada e seu rosto agonizava de dor e desespero. Caiu de joelhos na toalha estendida perto da margem e no primeiro empurrão, que veio narrado por um urro animalesco, deu a luz a um bebê minúsculo, roxo e ruivo. Com cuidado, pegou-o no colo e cortou o cordão umbilical — sobrenaturalmente, não sentia mais dor alguma. Olhava obsessivamente para o recém-nascido em seus braços, agora já coberto pela blusa da jovem e com um tom de pele mais rosado e normal. Ela começou a chorar porque não sentia amor nenhum. O bebê era como um estranho, cuja desconexão era intensa de tal maneira que aquele menino poderia ter sido parido por qualquer outra mulher.
As lágrimas escorriam pelo rosto da jovem, que naquela altura já nem sabia o motivo específico do choro, e, com delicadeza, colocou o recém-nascido no tacho de cobre e o embalou suavemente dentro das águas da lagoa. Como num ritual tenso e silencioso, foi deixando a água entrar dentro do tacho, de pouquinho em pouquinho, até que o bebê estivesse apenas com a cabeça para fora da água. Nesse momento, ele já chorava alto, clamando por socorro, mas isso só causou mais repulsa na jovem e, num golpe fatal, afundou o tacho segurando-o pela barriga do recém-nascido que, num instante perturbador, desapareceu no fundo da lagoa.
A moça manteve-se no local, ajoelhada, chorando e sangrando dentro da água. “Como pôde? Como não poderia?”, pensava de forma esquizofrênica. Antes que pudesse se recompor da loucura, um redemoinho formou-se no centro da lagoa e foi em direção à ela. Avistou o tacho de cobre flutuando por cima do vórtice aquático, segurado pela Mãe D’água, que tremia de raiva em sua beleza mística e inebriante. Com um olhar de fúria, fitou a jovem e gritou:
— Maldita! Você sofrerá as consequências do seu crime contra essa pequena criatura indefesa!
E dissolveu-se novamente na lagoa, com a mesma magia pela qual se materializara, sumindo com o filhote humano para dentro da água. A moça, cuja expressão era pálida e atônita, sentiu em seu âmago o destino de desgraça que a aguardava.
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CASCUDO, Luiz da Câmara. Lendas brasileiras para jovens. 2. ed. São Paulo: Global, 2010. 24-27 p.