Obras da ditadura militar facilitaram invasões à Terra Indígena Yanomami

“apenas no século XX indígenas tiveram contato com povo externo”

Rafael Neves/UOL

Decretado pelo governo na semana passada, o estado de emergência no território Yanomami renovou pedidos pela retirada dos garimpeiros da região. A mineração ilegal, que hoje emprega cerca de 20 mil pessoas no local, expõe os indígenas à violência e a problemas sociais e de saúde.

Com base em arquivos públicos e privados, o UOL Notícias encontrou registros de garimpo em Roraima há pelo menos 60 anos. Os documentos apontam, contudo, que o acesso de invasores à região foi facilitado a partir da década de 1970, após a construção de estradas e projetos minerários da ditadura militar.

Protegidos por uma área montanhosa, de difícil acesso, os povos indígenas de Roraima tiveram raro contato com a sociedade externa no início da colonização. Foi só no final do século 18, quase 300 anos após a chegada dos portugueses ao Brasil, que pecuaristas começaram a abrir fazendas onde hoje está Boa Vista, capital de Roraima.

Na primeira metade do século 20, os grupos indígenas que viriam a ser chamados de Yanomamis começaram a ter contato esporádico com funcionários do governo e com missionários católicos e evangélicos, que abriram postos na região. Em 1958, um documento da administração local do SPI (Serviço de Proteção aos Indígenas), órgão antecessor da Funai, sugeria medidas para evitar que os “civilizados” — ou seja, a população rural — explorassem a mão de obra dos indígenas na mineração.

“É de absoluta necessidade a instalação (…) de um posto de atração. Seria, assim, possível evitar [que] fosse o índio explorado pelo civilizado, quer usado como trabalhador na extração de minérios, como na invasão das terras em busca de produtos extrativos” – relatou o Telegrama da “ajudância de São Marcos”, administração local do SPI, em junho de 1958.

Até aquele momento, porém, a maioria dos yanomamis vivia sem contato com os brancos. Essa realidade começou a mudar graças a três projetos patrocinados pela ditadura militar, instalada em 1964. Em 1970, o governo criou o projeto Radam, voltado a mapear recursos naturais da Amazônia.

Nos anos seguintes, a iniciativa descobriu grandes jazidas minerais no subsolo de Roraima, especialmente ouro e diamante. Em 1973, começou a construção da BR-210, chamada de Perimetral Norte. A abertura da estrada, que nunca foi concluída segundo o plano original, levou várias aldeias Yanomamis a ter contato forçado com os trabalhadores da obra.

No ano seguinte, em 1974, começou a construção da BR-174, a rodovia Manaus-Boa Vista. A estrada não atingiu diretamente o território dos Yanomamis, e sim de outro povo, os Waimiri Atroaris.

“Arte/UOL”

Conduzida durante o governo Dilma Rousseff, de 2011 a 2014, a Comissão Nacional da Verdade tratou de violações aos direitos dos indígenas decorrentes dessas obras. Os Yanomamis, segundo o documento, foram afetados especialmente por epidemias. “Um dos exemplos mais bem documentados de omissão de vacinação preventiva ocorre com os Yanomami, entre os quais estava sendo construída a rodovia Perimetral Norte. Em 1975, uma campanha de vacinação de três semanas é reduzida a dois dias e meio. A Divisão de Saúde da Funai é acusada de se negar a vacinar os índios da região de Surucucus. Ao todo, apenas 230 índios da área da Perimetral e da missão Mucajaí foram vacinados” – diz trecho do relatório final da CNV (Comissão Nacional da Verdade).

O garimpo, àquela época, ainda não estava consolidado no território Yanomami. Foi só uma década mais tarde, a partir de 1985, que garimpeiros começaram a entrar aos milhares em território indígena. O relatório da Comissão da Verdade responsabiliza não apenas o regime militar, mas também o governo do ex-presidente José Sarney pelas invasões.

O motivo, segundo o documento, foi a falta de preocupação com os indígenas na execução do projeto Calha Norte, voltado a desenvolver a região. Foi nessa época que se proliferaram garimpos e pistas de pouso clandestinas no território Yanomami.

“12.dez.1989 – Pista de pouso clandestina para abastecer o garimpo em Paapiú, em território Yanomami Imagem: Charles Vincent/ISA”

Segundo a Comissão da Verdade, a exposição ao garimpo representou uma tragédia humanitária para o povo yanomami. Cálculos feitos pelo governo à época apontaram que o número de garimpeiros ao final da década de 1980 chegou a 40 mil, o dobro do atual. “Não há um número oficial de mortos em decorrência dessas invasões, mas se estima que chegue aos milhares. Comunidades inteiras desapareceram em decorrência das epidemias, dos conflitos com garimpeiros, ou assoladas pela fome. Os garimpeiros aliciaram indígenas, que largaram seus modos de vida e passaram a viver nos garimpos. A prostituição e o sequestro de crianças agravaram a situação de desagregação social” – diz o documento da Comissão da Verdade.

“30.nov.1989 – Piloto da FAB leva mulher vítima do garimpo para posto médico de Surucucus, na terra Yanomami Imagem: Charles Vincent/ISA”

Em 1992, após décadas de pressão de indigenistas e antropólogos, o governo demarcou o território yanomami. Até então, o poder público havia garantido para os indígenas apenas reservas isoladas umas das outras, e não uma área contínua, o que é apontado pelos técnicos como prejudicial ao modo de vida indígena. A Terra Indígena Yanomami é hoje a maior do Brasil. Com 96.650 km², área semelhante ao estado de Santa Catarina, o local abriga 26.780 pessoas, segundo estimativa do ISA (Instituto Socioambiental). Nas últimas décadas, o garimpo jamais deixou de ser um problema na região..

“27.jan.2022 – Garimpo ao lado da comunidade Homoxi, na terra indígena Yanomami Imagem: Bruno Kelly/ISA”